Esse é o primeiro capítulo de um romance que estou escrevendo. Espero que gostem ^^
Ele
terminará de ler a carta. Suas mãos tremiam de raiva. Como ele pode fazer
aquilo? Mais uma para a lista infinita de merdas que ele fez, pensou. Não
ligava para o pai, só que aquilo, era imperdoável. O desgraçado conseguiu
esconder tudo aquilo por todo esse tempo. Canalha. Sem saber Edgar tinha uma
irmã. Uma meia irmã seria o correto.
Sentou
no sofá, com a folha jogada a sua frente. Cheia dos escritos daquele que dizia
ser alguma coisa sua. Colocou as mãos sobre o cabelo de forma pesarosa. Os
pêlos castanhos arrepiados eram remexidos para tentar aplacar sua fúria. Sem
sucesso.
Bufou
como um touro bravo lançado na arena. Seus dentes rangiam com muita força.
Pareciam até que trincariam a qualquer momento. Ele estava em fúria como sempre
estava, mas agora era bem pior. Visto que aquilo era um segredo que foi tanto
tempo ocultado. Para que? Para ele se sentir bem?
Levantou
de uma vez só e chutou o ar. Virou em direção à parede e a golpeou inúmeras
vezes. Até ver um vermelho escorrer na frente de seus dedos. Como se fosse um
rosto. E até formou um rosto mentalmente ali. O foco do seu ódio momentâneo
eterno, igual a tantas outras vezes fez antes. Se bem que preferiria que fosse
ele mesmo, para ver o sangue daquele nariz nojento.
Por
último, gritou. Ao fazer isso sua mãe apareceu na sala extremamente preocupada
com o filho.
-O
que foi Edgar? Algum problema?
-Ele
tem uma filha! Desgraçado! O filha da puta tem uma filha! Desgraçado,
cachaceiro e cuzão de primeira!
-E
o que tem isso? – falou calmamente e baixo como sempre fazia Benedita.
-E
o que tem isso? – perguntou um Edgar Pontes furioso – Ele sempre me falou que
eu era seu único filho. Eu até perguntei se já tinha outro filho, outra
família. E de repente, me surge essa porcaria escrita? Que eu tenho uma meio
irmã? Uma pivete de doze anos?
-Esqueça
isso. Não tem motivo para todo esse barulho.
-Não
tem? Por acaso sabia de toda essa merda?
Quando
falou isso, o jovem pegou o papel de forma a amassá-lo. Com a raiva segurava
fortemente o conteúdo da carta. Como uma tocha ou qualquer outra coisa. Menos
um papel escrito. Ele apertava aquilo com vigor suficiente para fazer seu punho
sangrar. Quando estava prestes a falar algo se virou para o seu quarto feito um
trovão.
Arrumou-se
como de costume. Quando iria sair normalmente, com pressa. Trocou o short preto
por uma calça jeans. Colocou a jaqueta por cima da camisa preta do Iron Maiden
– que estava quase cinza – para não passar frio. Isso visto que era Julho
agora.
Benedita
ficou curiosa. Vendo que ele se trocava tão rapidamente, sem tomar banho. Já se
acostumou com isso.
-Vai
sair? Aonde vai Edgar?
-Vou
atrás dele, oras!
-Como
assim?
Depois
de amarrar o cadarço ele pegou o envelope que havia deixado no criado mudo. Em
cima desse cômodo estavam várias coisas: cartas antigas, recado de
ex-namoradas, lições de casa, CDs velhos e virgens, tranqueiras em geral e toda
a sorte de coisas inúteis e fúteis. Ele nem sabia mais o que tinha ali. Só que
naquele momento nem pensava mais sobre aquilo de tanto ficar com a cabeça
quente.
-Aqui
tem o endereço dele. Deve estar morando na cidade pelo que eu vi. Eu vou ter
uma conversa com o “Senhor de Filho Único”. Uma conversa com a minha mão
fechada na cara dele.
-Mas
o que tem isso? Você vai mesmo? – disse a mãe com a mão no coração depois
daquelas duras palavras.
-Sim,
vou até ele. E jogar na cara dele que não presta para criar um filho... Quem
dirá uma filha! E em qualquer caso, quebro a cara do imbecil em dois. Nem
preciso de desculpa para isso.
-Amor,
esse endereço eu acho que sei aonde é. Não seria uma...
-Aonde
é? – interrompeu o garoto.
-Depois
do ginásio... – depois dela falar isso, Edgar atravessou a casa com velocidade,
chegando até a porta. Dali em diante foi até a rua rapidamente. Igual a um
vento veloz.
Descia
o morro com uma velocidade fenomenal. Parecia uma bala disparada de um
revolver. E como uma, queria causar estrago enorme de preferência. Com força e
peso para ver a cara daquele idiota que um dia ele deve a infeliz idéia te
chamar de pai.
Queria
chegar até ele o mais rápido possível. Alcançar o miserável que o abandonou. O
deixou para trás como um pacote enorme de lixo a anos atrás. Alguém que nunca
sentiu falta dele em todo esse tempo. Que preferiu ignorar completamente sua
existência.
Agora
tinha o disparate te lhe mandar uma carta confessando que possuía uma filha?
Ah! Não iria ficar assim não. Ou ele achava que iria? No mínimo quebrar o rosto
do corno. Com dois pés no peito dele se pudesse.
Pegar
e arrebentar a cara dele era só uma parte. Espancá-lo com toda a força dos seus
punhos fracos. Sempre apanhava, mas agora iria fazer o que pudesse. Aprendeu
que enquanto estivesse em uma briga teria que ao menos deixar um olho roxo na
cara do idiota da frente. Deixar sua marca. Em especial se estivesse cercado.
Pegar um deles e esperar sobreviver aos outros. Golpes, chutes, canos, pés de
cabra, pedaços de madeira velha, ferro de concreto, tijolos. Tudo já foi usado
contra ele. E ele sobreviveu. Era jovem e forte. Digo forte para resistir.
Nunca
ganhou uma briga. Desde moleque só apanhava. E apanhava de maneira única. Quase
uma ciência.
Apanhou
certa vez de dois rapazes quando tinha quinze anos. Os dois estavam no terceiro
colegial e, com certeza, deveriam ter dezoito anos ou mais. Ele levou vários
socos na barriga da seguinte forma: um segurava os braços de Edgar, enquanto o
outro golpeava. Vez ou outra, os golpes levantavam, acertando o rosto, ou
desciam acertando sua parte intima. Deixando ele jogado e levado pelo amigo
depois que levou uma surra também. O motivo para atacarem Edgar? Por não terem
ido com a cara dele. O motivo de atacarem seu amigo? Por ter tentado ajudar.
Esse
é um dos motivos te ter afastado as pessoas. Com isso, as pessoas não se
machucavam. Longe dele qualquer um poderia se sentir finalmente seguro. Nada de
socos, pontapés ou quaisquer agressividades. Não teria o dedo apontado mais do
que já tinha todos os dias. Não seria mais chamado de estranho na sua frente,
só pelas costas. Ele já estava acostumado com essa vida.
Agora
o motivo de sua descida era pegar aquele desgraçado.
O barulho dos cães parecia um zunido, um som
chato cheio de interferências. Como um microfone ou guitarra que oscila fazendo
distorções horríveis em um show. Isso irritava o rapaz.
Descendo com as pernas pesadas, com as costas
pesando tanto quanto o mundo. Os pés eram ligeiros, cheios de força, mas talvez
até essa estivesse acabando. Pois estava querendo parar de andar. Estava
dolorido como um inferno. Não poderia parar,
pensava ele. Já que iria causar dor para alguém que merecia.
Caramba,
talvez fosse longe até o tal lugar. Não importava mais. Além do que encontrar
sua intenção é o que interessava. Ou seja, seu pai.
Havia
descido os dois morros de sua casa. Estava na rua do pronto-socorro,
finalmente. Logo chegaria ao ginásio. Qual é o endereço mesmo? Ele havia
esquecido.Pegou o envelope da jaqueta. Colocou muito sem jeito aquele papel
dentro da roupa. Agora estava todo amassado. Dede que fosse possível ler, era o
que importava.
Eduardo
Pontes Tavares
Rua Presidente Castelo Branco, n 320
Bairro Brotas
Santa Isabel, SP
CEP 07500-000
Rua Presidente Castelo Branco, n 320
Bairro Brotas
Santa Isabel, SP
CEP 07500-000
Certo. Número trezentos e vinte. Agora, como ir
até lá? Começou a procurar a tal rua e o número. Mas não encontrava. Parecia
que o lugar estava em outro universo. Até que uma alma iluminada conseguiu
entender o dilema.
-Ah! Deve
ser o UPA! Eu já vi esse número lá.
UPA?
Fazia até sentido: talvez por não possuir o endereço fixo, usou o daquele
lugar. Talvez trabalhe lá. Sempre conseguia um bico quando queria, para pagar
suas cachaças e bebidas. Bêbado infeliz.
Começou a
andar pela rua que concedia acesso ao lugar do endereço. Quando lá chegou,
finalmente pensou em como o abordar. Se o fizesse dentro do recinto médico,
seria expulso imediatamente. Sem ter chance de espancar Eduardo. Pensou um
pouco antes de entrar, elaborando seu plano.
Olhou
mais uma vez, notando que havia um numero de quarto no envelope, imaginou que
talvez fosse onde ele dormisse. Nunca foi muito brilhante. Característica
herdada, muitos diriam.
Visto que
não pensou em que nenhum momento que o seu velho poderia estar hospitalizado.
Nem ligou para tal fato.
O que fez
foi entrar e perguntar na recepção pelo número do quarto. Já que perguntar pelo
nome de Eduardo seria muito fácil e perigoso não ser atendido. Então o fez. De
qualquer forma, caiu na pergunta:
-É
parente de alguém?
Olhava
para todos ao redor. Um senhor com a perna cheia de pinos, uma mulher que
parecia grávida, outro reclamando de dores de cabeça, sem falar do rapaz
soltando gemidos no canto do lugar. A fila não parava neles, mas foi a que
Edgar viu na sua linha de visão. Já esteve duas vezes ali, pelo que se lembra.
Só então
pensou que Eduardo poderia estar ruim. Achava que não, de qualquer modo. O
santo dos bêbados era forte. Doenças, machucados ou cortes passavam longe do
corpo de seu pai. Era resistente como um cavalo e imortal como um diabo.
-Sim –
respondeu prontamente pensando em como entrar – sou filho.
-Ah certo
– falou a atendente sem prestar muita atenção no que ele acabou de falar. Em
seguida apontou o caminho para os leitos – Por ali.
Às vezes
o pessoal do é hospital é tão displicente.
Ele
caminhou na direção que a mulher lhe mostrou. Pensava estar mais próxima do seu
objetivo. Enfim, as pancadas se aproximavam.
Como
retirar o sujeito lá de dentro? Se estivesse acamado seria mais complicado, mas
com o devido cuidado, quebrar coisas se tornava uma arte. Ninguém sabia melhor
disso do que ele. Estava acostumado com isso na escola. Não era tão diferente
na vida fora daqueles muros chatos cheios de letras.
Uma idéia
básica lhe veio na cabeça. Quase como seu mantra. Sempre que entrasse em uma
briga, não sairia dela sem deixar um olho roxo na face do sujeito.
Passou
por dois corredores e finalmente estava diante do quarto. Relembrou passo por
passo do plano e começou a rir. Segurou-se. De que outra maneira deveria se
sentir? Iria colocar tudo que o estava incomodando para fora. E isso seria um
alívio.
Finalmente,
abriu a porta daquele leito. Funcionava como os bons e básicos quartos de
hospital: paredes em tons de verde limão claro, camas que se ajustavam aos
problemas dos pacientes, divisórias entre elas e os soros fisiológicos, além de
toda a tranqueira hospitalar. E óbvio, havia enfermos ali.
Começou a
caçada por Eduardo. Olhou bem para os três enfermos ali e nenhum batia com seu
pai. Um rapaz com a perna enfaixada, um senhor respirando com dificuldade e uma
garota olhando pela janela. Nada dele nas proximidades, foi o que pensou.
Procurou,
mesmo por debaixo das camas. Fez como um policial militar dedicado atrás de um
traficante de drogas. Caçou em cada milímetro do lugar uma pista de onde estava
o seu velho. Quase fez o homem de perna enfaixada cair do seu lugar. Quando
notou isso, a garota na janela riu.
Edgar
ficou irritado com tudo isso. Por que cargas d’água aquela protótipo de fedelho
ria dele? Iria tirar a limpo aquela cena besta.
-Do que
ta rindo menina?
A jovem
tinha cabelos loiros, tom de cobre quase. Usava um dos famosos aventais
hospitalares desses lugares. Era uma garota de dez anos ao que parecia. Tinha
dentes brancos cheios de vida e inocência. Ficou sentada arcada com as pernas
em cima da cama.
-Eu estou
rindo de você moço. E se diz “esta rindo”. Você é o Edgar?
Foi pego
de surpresa. Como aquela guria sabia quem ele era? Com certeza, o pai dele pode
ter comentado. O Eduardo, no entanto nunca falava nada de seu filho pelo que
sabia. A não ser que fosse estritamente necessário. Isso era muito raro.
-Sim. Sou
ele.
A garota
se arrumou, ajeitou o avental e desceu da cama. Com as mãos para trás fitou com
alegria singela e simples o rosto do bruto rapaz de dezoito anos.
-Me chamo
Laís Pontes Albuquerque. Somos filhos do mesmo pai.
Edgar
rangeu os dentes e em vez de falar mal, ofender, bater ou qualquer uma de suas
atitudes normais, tropeçou e caiu na divisória. Com ele fazendo tal trapalhada,
acertou sem querer na perna enfaixada do rapaz. Este por sua vez soltou uma
torrente de xingamentos dos mais diversos tipos e gêneros.
-Moleque
tonto! Toma cuidado! Vê se pode...
-Ah,
desculpa! Sério...
Ajeitou
mais ou menos aquela divisória, pediu em mais uma série de palavras repetidas,
desculpas ao moço. Depois, prontamente encarou a menina. Ele segurava o riso
diante do rapaz grande e cheio de raiva. Parecia que tinha visto o sujeito mais
engraçado do mundo. Era como um gnomo muito esperto diante do tolo gigante da
montanha, alguns diriam.
Edgar
cruzou os braços, forçou o olho na direção dele, erguendo a sobrancelha. Não
parecia nem um pouco ameaçador mais. A garota fazia o mesmo e de repente
soltava grunhidos engraçados, brincando com sua voz. O rapaz atingido pela
divisória estranhou aquilo, enquanto o senhor que respirava ainda com a mesma dificuldade
que ignorava tudo.
-O
que você pensa que esta fazendo mina? – perguntou um Edgar estranhando a
atitude dele.
-Te
imitando “mino” – falou isso com tom de voz tentando parecer mais forte e
engraçado – Alias, não sou “mina”, “bro”. Sou uma menina, obrigado – dito isso,
agachou graciosamente como se o avental fosse um lindo vestido.
O
jovem colocou a mão atrás da cabeça coçando ela em um grave sinal de confusão e
constrangimento. Estranhou tudo aquilo até então.
Pegou
uma cadeira e puxou para sentar, como se estivesse com sinais de cansaço.
Completando essa figura, colocou os dedos entre os olhos, acima do nariz, como
se usasse óculos. Parecia não querer crer no que seus olhos lhe diziam. Só
poderia ser uma brincadeira. Só que aquele não era o único sentido que lhe
enganava. Era a audição, o tato... Como se Deus estivesse pregando uma das
maiores piadas do mundo.
Ela,
em contrapartida, se apoiou com cuidado contra a cama. Parecia olhar ele cheia
de graça. Deve estar me achando o palhaço particular dele. Um homem de dezoito
anos sendo humilhado por uma garota de dez? Vê se pode.
-Como
é? – falou revoltado o Edgar e ainda com a mão entre os olhos
-Como
é o que?
-Você
é minha meio irmã?
-Sim,
sou sim.
-E
qual o motivo de estar aqui? Não era para o imbecil de o velho estar aqui?
-Como?
Ele
-Não
era para o nosso pai estar aqui? Melhor, o seu pai...
-Mas
ele também não é seu pai?
-Não
por minha vontade, mas é...
-Você
tem falado com ele? – ela fez a pergunta com os olhos quase vibrantes e cheios
de vida, ignorando a pergunta dele. Foi então que Edgar fez algo sem reparar:
respondeu educadamente.
-Olha...
Faz um bom tempo que não o vejo – e quando notou aquela chama de esperança
fugindo do rosto de Laís – Agora me lembrei! Ele me ligou, acho que duas
semanas atrás.
Mas
como? Por qual motivo ele falou aquela bobagem? Das poucas vezes que seu pai
ligou, e ele se lembrou, desligou na cara do sujeito antes que pudesse falar
qualquer coisa. Em nada fez desmentir essa bobagem, o que a fez sorrir. Como um
pouco antes, cheia de vida. Alias o que fazia ali aquela menininha? Estranhou
aquilo tudo.
-Ei!
O que faz aqui esquisitaça?
-Primeiro
não sou “esquisitaça”. Já que nem sei se existe uma palavra como essa. Chame-me
de esquisita. E se eu estou em uma Unidade de Pronto Atendimento, é por estar
doente não é? Óbvio.
-Tá,
entendi! Certo, certo... Bem e como você se encaixa nesse quarto? Era para o
Eduardo estar aqui!
-Fui
eu que escrevi essa carta. Tolinho...
-O
que!? – falado isso Edgar levantou de súbito, quase batendo na divisória
novamente. Não o fez por um triz. Assim mesmo levou um:
-Toma
cuidado idiota! E para de gritar.
-Ah,
desculpa! Sério...
Uma
vez mais, a jovem disparou a metralhadora de risadas. Batia as mãos na cama
como se isso fosse deter aquela cena te lhe fazer sorrir pelas trapalhadas de
seu meio irmão. Ela então pegou uma simples escada para tentar alcançar a cama.
Colocou a mão na parte de trás do avental para subir devagarzinho, com todo o
cuidado. Sentou na beirada de modo que pode balançar seus pés descalços e que
ficaram sujos, devido ter pisado no azulejo.
-Para
de me fazer rir, se não passo mal – disse ela entre gargalhadas.
-Ah
não exagera moleca!
-“Moleca”?
De onde você tira essas palavras? Do manual de como nunca se falar e escrever?
E eu to falando sério. Tenho sopro no coração.
-Tá
maluca? Desde quando tem ar no coração?
Antes
que ela começasse a rir, surgiu no quarto um médico de jaleco, óculos e
estetoscópio no pescoço. Seu cabelo era curto e bem arrumado, típico dos
médicos de todos os grupos conhecidos. Tinha uma gravata de cor neutra e bem
simples, mas que trazia consigo todo o respeito da sua profissão. Os sapatos
estavam sujos, mas era natural para alguém que pegou no trabalho naquele lugar o
dia todo. Estava com cara de poucos amigos.
Assim
mesmo, foi educado com Edgar:
-Meu
jovem, é você que esta fazendo uma barulheira por aqui.
-Ah,
desculpa! Sério... Por favor!
-Você
não muda a vitrola hein irmãozinho? – soltou Laís e em seguida olhou para cima,
quando o jovem a fitou. Como um elfo peralta das histórias de Shakespeare. E
isso o deixava nervoso.
Ignorando
Edgar, o médico atravessou o recinto e olhou para Laís. Começou a examinar a
menina como todo o médico faz. Algo que fez aquele garoto estranhar toda a
situação em que se encontrava. Uma meia irmã, um rapaz com perna enfaixada que
solta palavrões para todo mundo, um homem asmático, um médico bem grande. Tudo
isso em um só quarto.
-Meu
rapaz, o que ela falou foi sopro no coração – explicava o médico se voltando
para Edgar. E enquanto ele fazia isso, Laís fazia várias caretas com a língua e
esticando a boa, irritando o jovem – Ou melhor, sopro cardíaco. É um ruído
produzido pela passagem do fluxo de sangue através das estruturas do coração.
Ele pode ser funcional ou fisiológico, ou patológico em decorrência de defeitos
no coração. Cerca de quarenta ou cinqüenta por cento das crianças saudáveis
apresentam sopros inocentes sem nenhuma outra alteração e com desenvolvimento
físico absolutamente normal – Ele então se voltou para a menina.
-Olha
seu doutor, eu não sei nem o que é isso. Bombei em biologia.
Viu
então a menina abrindo a boca como se quisesse falar que “bombar” estava
errado. O médico fez algumas perguntas a ela enquanto continuava seu discurso:
-Em
resumo, para você que é leigo... Sopro no coração é um probleminha nas válvulas
cardíacas.
-Sei,
mas pode repetir de novo. Me perdi no leigo.
O
médico bufou, com a estupidez de Edgar. Laís segurava a barriga de tanto rir
enquanto batia as pernas no ar. O jovem olhava com a cara vermelha de raiva com
aquela baixinha.
-Falando
nisso. Você é o que da Laís aqui?
Ele
iria falar, mas foi interrompido pela menina:
-É
o meu irmão!
Mais
uma vez, ele não sabia o motivo, mas se sentiu meio tonto. Pois aceitou as
palavras dela. Nunca foi o sujeito mais correto do mundo, só que nunca foi de
mentir. Fosse para uma menina ou para um médico. E desde que entrou ali naquele
quarto esteve envolvido em duas mentiras. Já que em seguida, o homem perguntou
se isso era verdade. No mesmo instante, balançou a cabeça em afirmativa.
Foi
visto de cima a baixo.
-Para
um irmão sabe pouco da vida dela não acha? São bem parecidos pelo menos. Bem
aproveite a visita. E menos barulho esta bem?
Ele
mais uma vez atravessou a sala em direção dos outros enfermos. O da perna
enfaixada já reclamava de Edgar e foi acalmado pelo médico.
Já
Edgar, quando ele deu as costas, mostrou a língua de modo desafiador. Laís riu.
O jovem não pode deixar de soltar um sorriso maroto. Quando então balançou a
cabeça se lembrando da frase de sua parenta pela metade.
-Como
assim sou seu irmão?
-Você
não é filho do meu pai?
-Sou.
-Então
sou sua irmã.
-Mas
não pode – falou cochichando.
-Como
não pode? – perguntou inocentemente.
-Ora,
pois não pode.
-E
qual o motivo?
-Pois
não pode. Não pode e não pode. Pronto.
-Não,
não é resposta.
-Mas
não pode fia de Deus.
-Filha!
Ai, ai...
-Cuma?
-Não
se fala “fia”. É filha. F... I... Lha! Filha.
-Eu
sei como se escreve. Esta bem?
-Não
parece... – dito isso falou com cara séria. Isso desarmou o jovem. Ela parecia
triste. Estava com um rosto de pena, que deixaria com dó o mais duro coração. E
foi assim com o meio irmão de primeira viagem.
-O
que houve... Laís é isso? O que houve?
Ela
sorriu um pouco quando notou que ele havia decorado o seu nome.
-Minha
mãe ainda não veio. E é horário de visita.
A
mãe dela. Uma mulher que como sua mãe, deu a luz a um filho de Eduardo. Uma
moça, que agora pensou o jovem, deve a infelicidade de conhecer aquele bêbado.
Ele pensa sobre isso, e não entende como essas duas tiveram a vida tocada por
ele. Quantas vezes as pessoas não notaram o que presta? E no caso dele, o que
não presta? Já viu moças se acostumando a um idiota do seu lado, o que fazia
compreender esse fato estranho.
-Ela
pode ter atrasado – disse o jovem, enquanto mais uma vez se sentava próximo da
cama.
-Será?
– aqueles olhos cheios de vida. Pareciam os olhos do Gato de Botas do Shrek,
pensou ele. Não poderia deixar ela triste. Mesmo sendo uma peste em forma de
pequena pessoa.
-É
sim. Com certeza! Logo chega. Mas peraí. Você esta em horário de visita é?
-Sim.
Lógico.
A
pequena mocinha sorriu com aquilo que foi dito. Sabia que era uma mentira na
cara daquele jovem. Só que preferiu continuar com a encenação. Gostava da
companhia dele. Era óbvio para qualquer observador.
-Você
é engraçado.
-Sou
é? – falou isso de modo debochado.
-Sim,
em especial quando sorri com o canto da boca. Ou fala assim com ela.
-Com
o canto da boca?
-Sim.
É bonito. Meigo. Meiguinho! Vou te chamar de Meiguinho.
-Mas
que raio é esse de “Meiguinho”? Essa palavra nem deve existir!
-Você
que fala tudo errado e acha que eu faço o mesmo? Liberdade poética, já ouviu
falar?
-Sei,
sei... Mas vem cá, qual é a sua idade?
-Tenho
doze anos – ao falar isso tentou inutilmente mostrar isso com os dedos.
Edgar
olhou com espanto para a jovem.
-Doze?
Jurava que você tinha menos anos.
-“Jurava
que você era mais nova”. Acho que fica mais bonito.
-Só
erro.
-Sim
e muito – falou isso fechando os olhos e com ar de superior.
-Sua
mãe trabalha no que pivete.
-Ela
é secretária, seu troglodita.
-Aonde?
-Em
um dentista da cidade mesmo.
-Que
legal
Agora
ela o fulminava com o olhar. Era em uma parte nervosa, em outra parte cômica
aquela cena.
-Você
é louco!Minha mãe trabalha nas portas do Inferno de Dante! Tudo bem que eu
nunca li esse... Mas é como se minha mãe fosse à recepcionista de um carrasco!
Ele
agora ria, quase segurando a barriga por tamanha imaginação. Não gostava de
dentista também. Nenhuma espécie de médico. O que nunca fez foi descrever o
consultório de um dentista com tamanho perigo. Ela era exagerada.
-Oh
menina que gosta de extrapolar que você é!
-Eu?
Imagina...
Quando
falou isso, os dois estouraram em risos. Era bonito ver o espaço daquele lugar
preenchido com as risadas dos dois. Parecia a coisa mais bela do mundo, duas
crianças conversando sobre bobagens, Do mesmo modo, eles nem pareciam ser dois
desconhecidos até pouco tempo.
Foram
interrompidos mais uma vez, agora por uma moça. Muito cansada por sinal. Tinha
cabelos castanhos, quase chegando a um tom de preto. Usava camiseta branca e um
jeans. Era baixa. O que de certa forma explicava o tamanho de Laís, pois estava
na cara de que era mãe dela. Muito bonita por sinal.
-Ai,
desculpa o atraso La.
-Tudo
bem – falado isso, a mulher abraçou fortemente a criança, confirmando a
suspeita de Edgar.
Arrumou
a franja do cabelo de Laís e em seguida perguntou:
-Esta
tudo bem com você? Comeu? Trataram-te bem?
-Sim.
Mãe esse é o Edgar. Ele agora é o meu irmão.
-Como
assim querida? – foi quando notou o rapaz na sala. Este por sua vez um “olá”
tímido para a recém chegada com a mão – Ah é você de quem ela esta falando?
Olá.
-Eu
sou o Edgar. Filho do Eduardo. Pontes Tavares...
Viu
um rosto de surpresa na face da mãe de Laís. Não de nervoso ou fúria, mas até
do que conseguia acreditar ser alegria.
-Que
grande você é! Passa bem do meu ombro. Só pode ser filho mesmo. Acho que só a
Laís não puxou esse traço.
-Ah...
Obrigado. Eu acho.
-Ele
é meu irmão – repetiu Laís de modo bondoso. A moça acariciou seu rosto.
-Entendi
minha filha. Bem, eu trouxe seus livros.
Falado
isso, ela retirou de uma mochila bem infantil, uma boneca gorda, um tufo de
folhas amassadas e uns três livros. Edgar se fixou na capa dos escritos. Notou
que neles estava impresso O Hobbit, A Última Canção de Bilbo e Mestre Gil de Ham. Pareciam que eram
todos do mesmo autor.
-Qual
vai querer? – falou a moça segurando os três como um baralho de cartas. Laís
pegou o Mestre Gil de Ham – Por que não quis O Hobbit? Você o adorava.
-O
filme é chato, mãe! E esta me deixando com raiva do livro.
-Tudo
bem, mas livro é livro. Filme é filme. E o livro é tão bonito. Lembra?
-Esta
bem mamãe... Mas dessa vez quero esse.
As
duas pareciam duas comadres tratando sobre assuntos supérfluos. Já ele mais
parecia um moleque que é forçado pela mãe a assistir uma das mais chatas
conversas do mundo. Mesmo assim ficou ali ouvindo tudo aquilo, até:
-Esta
quase no horário de visita acabar. Amor fica com Deus – deu um beijo na testa
de Laís – e a tia Raquel já vai chegar. Ai ela passa a noite com você. Esta
bem?
-Certo
– disse ela segurando os livros e a boneca como se fosse um filhote bem fofo.
-Bem
vamos Edgar? – disse a mãe ao jovem. Este consentiu com agitando a cabeça. Nem
poderia fazer muita coisa naquela situação. Onde foi se enfiar?
-Até
mais baixinha.
-Olha!
Ele falou direito.
Mostrou
a língua para Laís sem que a mãe notasse. Levou na mesma moeda.
Enquanto saia do
quarto, Edgar fitou o senhor com dificuldade para respirar. daquele mesmo modo
continuava. Já o com a perna enfaixada nem o encarava mais. Na verdade o
repudiava. Não ligou muito para isso.
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